Post de 23/05/2024

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A tragédia como evento canônico em "Furiosa" e "Fúria Primitiva".

Há quase um ano, quando escrevi sobre “Homem-Aranha: Através do Aranhaverso”, disse:

“Há quem acredite que, fazer parte de uma minoria, é se acostumar com a dor e com o sacrifício que a identidade demanda, como se a perda e o sofrimento fossem condições inerentes de nós mesmos. Com Miles, ‘Através do Aranhaverso’ propõe que nós não temos de aceitar essas imposições arbitrárias e que podemos mudar o status quo.”

De relance, abordei o mesmo tema no texto da semana passada, sobre “X-Men ’97″ e “Planeta dos Macacos – O Reinado”. E, nesta semana, por uma coincidência cósmica, temos mais dois lançamentos com tragédias como “eventos canônicos”. Para quem não viu “Através do Aranhaverso”, “evento canônico” é, por exemplo, a morte do Tio Ben – que possibilita com que Peter Parker se torne o Homem-Aranha.

Em todas as dimensões, com todas as criaturas-Aranha, uma tragédia deve acontecer para que a história se desenrole. De uns bons tempos para cá, cineastas negros vem rechaçando, por exemplo, obras que tratam da escravidão. No Brasil, o comentário de Hugo Gomes no Facebook se firmou em nossa constelação de memes: “finalmente histórias de gays trambiqueiras. ninguém aguenta mais só história de gay sofrendo. queremos mais gays assim, gays empinando moto, gay dando tiro etc.”

Ou seja, mesmo que as minorias sofram – e muito! – nós não queremos ser definidos pelo sofrimento. Em “Furiosa: Uma Saga Mad Max”, que estreia nesta quinta-feira, a protagonista vivida por Anya Taylor-Joy é sequestrada ainda criança e, após uma série de desventuras dolorosas, vai parar sob o domínio do tirano Immortan Joe, vilão principal de “Estrada da Fúria”.

Em outro lançamento muito aguardado, o ator britânico Dev Patel estrela e dirige um filme de ação passado na Índia. Uma atrocidade cometida por poderosos em sua vila de origem desencadeia uma trama sanguinolenta de vingança. “Fúria Primitiva” é como “John Wick”, mas no contexto da luta de classes (ou castas) do país mais populoso do mundo.

Estranhamente, gostei muito mais de “Furiosa” do que de “Fúria Primitiva”. Digo “estranhamente” porque sou uma das raras pessoas que não gostou de “Estrada da Fúria” (saí do cinema com dor de cabeça pelas luzes piscantes e objetos lançados na direção do espectador, tudo culpa do 3D), e fiquei muito empolgada quando vi que Jordan Peele iria distribuir a estreia de Patel como diretor.

A história de Furiosa é marcada por múltiplas tragédias, a começar pelo sequestro. Sua personalidade, no entanto, é a mesma do primeiro momento em que aparece na tela até o último. Ela se importa com aqueles que conquistam a sua confiança, é corajosa, inteligente e sabe como se defender. Por exemplo, mesmo amarrada, ela rói a mangueira da moto do seu sequestrador para atrasá-lo.

Já em “Fúria Primitiva”, temos poucos vislumbres de como o personagem era antes de sofrer o seu próprio evento canônico, mas a sua vida parece definida não por quem ele é, mas pelo o que aconteceu com ele. E o que aconteceu com ele é um clichê de filme de ação – gênero que rotineiramente estupra, tortura e mata namoradas, esposas, mães, irmãs ou filhas apenas para conturbar o caminho do herói.

Mulheres também são vítimas no universo pós-apocalíptico de “Mad Max”, é claro. Há raríssimos momentos de solidariedade e compaixão em um cenário de terra não só arrasada, como tóxica. Em “Furiosa”, porém, o australiano George Miller não parece muito interessado em chafurdar o espectador numa miséria implacável. Ele prefere edificar (dependendo do plano, até literalmente) a bravura de uma mulher aguerrida.

Um dos traços mais marcantes da personalidade de Furiosa é que, diante da possibilidade do sacrifício de um ente querido, ela é incapaz de priorizar a própria sobrevivência. Em um mundo dominado pela hostilidade e pelo egoísmo, sua rebeldia se manifesta na defesa irredutível do próximo. E isto é suficiente para diminuir a importância de suas várias tragédias.