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Pisque Duas Substâncias
Como os filmes "Pisque Duas Vezes" e "A Substância" lidam com temas feministas, incluindo o horror corporal.
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Em agosto, a atriz Zoe Kravitz fez a sua estreia na direção com o suspense “Pisque Duas Vezes”, e agora, quase exatamente um mês depois, entra em cartaz o terror da francesa Coralie Fargeat, “A Substância”. Ambos são dirigidos por mulheres e possuem temas feministas – inclusive, foram lançados num ano em que a ansiedade em torno da autonomia feminina já nos rendeu “A Primeira Profecia” e “Imaculada” (destes dois, só o último é dirigido por um homem).
“Pisque Duas Vezes” trata de uma garçonete que conhece um bilionário numa festa e vai parar em sua ilha particular, o que logo se revela uma péssima ideia. Já “A Substância” tem Demi Moore como uma artista de televisão que completa 50 anos e é substituída por uma versão mais jovem, uma espécie de clone vivida por Margaret Qualley – para não estragar a diversão, vou deixar que o próprio filme explique como isto acontece.
Nas duas produções, temos mulheres que competem pela atenção masculina. Em “Pisque Duas Vezes”, as personagens interpretadas por Naomi Ackie e Adria Arjona se estranham por se interessarem pelo mesmo cara. Em “A Substância”, Elizabeth (Moore) e Sue (Qualley) se digladiam porque, num mundo comandado por homens, a objetificação do corpo feminino é uma moeda de troca. Nos dois universos, a sororidade seria a solução dos conflitos.
Kravitz, infelizmente, arremata a sua obra com um revanchismo batido – apesar de ilustrar bem a constante dissonância cognitiva à qual as mulheres se submetem diante da ameaça de violência física, isto é, fingir que está tudo bem até quando não está. Neste caso, a civilidade é utilizada como uma poderosa ferramenta de controle da mulher, mas a diretora não explora o tema e logo descamba à vingança vazia de uma “girlboss”.
“A Substância” já é mais interessante, tanto por dentro como por fora. A proeza técnica de Fargeat é inquestionável. Em alguns momentos, ela utiliza uma linguagem de propaganda dos anos 1990 (lembra “pipoca e guaraná”?), com seus planos-detalhe das bolhinhas de um refrigerante ou das gotículas de condensação que escorrem em câmera lenta. Tudo para atiçar o consumidor.
Só que, desta vez, o produto anunciado é um corpo jovem e magro, uma oferta valiosa às mulheres que mais necessitam de visibilidade e capital social. E por repetidas vezes, Sue é filmada como um objeto hiperssexualizado. A última vez que vi tantos closes de bunda assim deve ter sido durante alguma apresentação do grupo É o Tchan num “Domingo Legal”.
Com uma duração de quase duas horas e meia, “A Substância” é um filme de excessos. Tem bunda para todos os lados. São várias cenas que duram mais do que deveriam, com flashbacks que subestimam a inteligência do espectador e muito, mas muito sangue (não que eu esteja reclamando da quantidade de sangue, jamais).
A influência de Stanley Kubrick é evidente, desde o carpete do estúdio que lembra “O Iluminado” até o banheiro branquíssimo que remete à apoteose de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. É o horror corporal de David Cronenberg, no entanto, que rouba os holofotes, com seus caroços asquerosos, pústulas repugnantes e entranhas pegajosas – ainda que a cena mais nojenta seja, na verdade, a de um executivo comendo camarão.
Para as mulheres, o horror corporal é cotidiano. Antes de vencer a Palma de Ouro com “Titane”, Julia Ducournau, compatriota de Fargeat, fez um curta-metragem em que a puberdade de uma garota é retratada como se fosse a metamorfose de um monstro. Além dos horrores inerentes à condição feminina, nos sujeitamos também aos horrores das cirurgias plásticas e outras intervenções estéticas escabrosas.
Norma Desmond se mantém como a síntese insuperável de uma estrela decadente, que passa por uma bateria de procedimentos supostamente rejuvenescedores, mas enlouquece na tentativa de reavivar a carreira em Hollywood – isto já em 1950. “A Substância”, afinal, não é tão assustador assim para quem convive, desde menininha, com um prazo de validade. Ao badalar da meia-noite, somos nós que viramos abóboras.