Mubi: Dias Perfeitos

Wim Wenders encontra poesia nos banheiros públicos do Japão.

14/04/2024

No início do século 20, o cineasta soviético Sergei Eisenstein teve contato com a cultura japonesa – e um estudo aprofundado de cerca de 300 caracteres do idioma deu origem à teoria da montagem intelectual. No japonês, há ideogramas que funcionam por composição associativa. Por exemplo, o elemento “água” somado ao elemento “olho” cria o conceito “chorar”.

Para Eisenstein, esse era o mesmo princípio da montagem cinematográfica, em que o todo é maior do que a simples soma das partes – e o cinema deveria almejar um “laconismo máximo para a representação visual de conceitos abstratos”.

Por uma conexão óbvia, ele menciona o haiku, poesia tradicionalmente composta por apenas 17 sílabas e dividida em 3 versos, como uma síntese imaginativa que se expande num esplendor de significados. E assim é maravilhoso “Dias Perfeitos”, já disponível na Mubi.

Mesmo sob a direção de um alemão, “Dias Perfeitos” representou o Japão no Oscar deste ano – mas assim como Eisenstein, o mestre Wim Wenders fez a lição de casa. Convidado para conhecer um projeto de banheiros públicos em Tóquio, o diretor aproveitou as locações para retratar mais um homem de poucas palavras, como o protagonista do premiado “Paris, Texas”.

Interpretado por Koji Yakusho, Hirayama segue sua rotina com dedicação religiosa. Antes mesmo do amanhecer, ele dispensa os bipes artificiais de um despertador e acorda com o gentil farfalhar das cerdas da vassoura de uma vizinha. Ele, então, recolhe o colchonete do tatame, escova os dentes, apara os pelos do bigode e borrifa as plantas.

Hirayama é responsável pela limpeza de parte dos banheiros públicos da capital japonesa – função que ele desempenha com o mesmo comprometimento de um artesão habilidoso, ainda que ninguém reconheça o seu esforço. Durante o horário de almoço, ele senta no banco de um parque e tira fotos (com uma câmera analógica) dos raios de sol que atravessam as folhas de uma árvore.

Os japoneses têm um termo específico para esse encontro entre luz e sombra – “komorebi”. Composta pelos kanji de “árvore” (木), “vazar” (漏れ) e “sol” (日), a palavra também denota uma certa reverência pela beleza transitória da natureza. Como um haiku, “komorebi” representa a transmutação do ordinário em profundo.

Com sua câmera, Hirayama tenta capturar esses momentos que nunca mais vão se repetir – afinal, os raios de sol nunca vão atravessar as árvores da mesma maneira. E assim, cada dia é precioso. Como um monge silencioso em um constante estado de devoção, ele se entrega de corpo e alma ao instante presente, limpando banheiros como uma prática meditativa.

No zen-budismo, o propósito da meditação é conquistar um temperamento que permaneça tranquilo e equilibrado, mesmo diante de emoções negativas como raiva ou tristeza. Quando Hirayama encontra um menino perdido em um dos banheiros, ele pega em sua mão. Assim que a mãe o encontra, ela limpa as mãos do menino, enojada pelo faxineiro que parece nem se importar com o insulto do gesto.

De certa forma, Hirayama descobriu o segredo da felicidade – isolado, entregue ao trabalho e com uma rica vida interior que, na superfície, extingue qualquer sentimento de solidão. Que bom seria levar uma vida de águas tranquilas, sem atribulações! A paz só é perturbada, no entanto, quando sua sobrinha aparece.

Descontente, Niko (Arisa Nakano) vai buscar refúgio com o tio e Hirayama se vê obrigado a fazer certas adaptações em uma rotina tão perfeitamente organizada. Até então, não sabíamos nada de sua história e a chegada da menina nos oferece alguns vislumbres de um passado doloroso que, ao longo dos anos, ele fez questão de reprimir.

Quando nos abrimos aos outros, fazemos um convite à dor. Os momentos de alegria que ele vivencia ao lado da sobrinha compensam uma torrente de emoções adormecidas, positivas e negativas, que despertam tão violentamente? Hirayama, por fim, compreende a beleza de um feixe de luz que penetra a escuridão.

O fotógrafo amador nem sempre consegue registrar a beleza do que ele vê ao vivo. Wenders, que já havia feito um excelente documentário sobre Yasujiro Ozu, soube compreender e capturar a alma do Japão.