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Em Pecadores, o artista não vende a alma ao diabo
Diretor de “Pantera Negra” volta a colaborar com Michael B. Jordan para combater vampiros ao som do blues.
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Na lenda popular, Fausto foi um erudito que fez um acordo com o diabo numa encruzilhada – sua alma em troca de um conhecimento sem limites e de todos os prazeres mundanos imagináveis. Mesmo que você nunca tenha ouvido falar no alquimista do século XV, figura que inspirou a peça de J. W. Goethe, já deve saber a moral desta história.
Um clássico da literatura alemã, “Fausto” influenciou inúmeros livros e filmes, rendeu episódios dos “Simpsons” e até de “Chapolin”. Na versão mais recente de “Nosferatu”, há também um contrato importantíssimo – para o diretor Robert Eggers, o vampiro é um burocrata semelhante a Mefistófeles, um demônio motivado pelo cumprimento de uma transação sádica.
F. W. Murnau, quem criou o “Nosferatu” original, fez também uma adaptação de “Fausto”, em 1926. É bem possível que Eggers quis combinar as duas obras para homenagear não só o mestre do Expressionismo Alemão, mas outro importante pilar da cultura germânica, já que a trama vampiresca tem a sua apoteose por lá.
À mistura europeia de morcegos e contratos diabólicos, Ryan Coogler acaba de adicionar o ingrediente do blues. Em “Pecadores”, o diretor de “Pantera Negra” volta a colaborar com Michael B. Jordan (em dose dupla!) para reinterpretar a lenda Faustiana ao som do ritmo criado pelos descendentes de escravos no extremo sul dos Estados Unidos.
Na mitologia do gênero musical, o blues também conta com um Fausto. Dizem que, numa encruzilhada do Mississippi, o músico Robert Johnson teria vendido a sua alma ao diabo, em troca de uma proeza ímpar com a guitarra – um mito reforçado por músicas como “Crossroads Blues”, “Me and The Devil Blues” e “Hellhound on My Trail”.
De fato, há artistas que nos surpreendem com um talento descomunal, além do alcance dos reles mortais – mas e se esta aptidão extraordinária não for fruto de um acordo profano? O diabo não sentiria inveja? Não tentaria tomar essa capacidade humana para ele próprio e, assim, aumentar o seu poder de barganha?
Em uma brilhante estreia no cinema, o cantor Miles Caton interpreta Sammie, filho de um pastor evangélico que gostaria de manter os dotes musicais do garoto limitados ao gospel. “Se continuar dançando com o diabo, um dia ele vai te seguir até em casa,” ele avisa ao jovem já rendido pelo blues.
Para o desgosto do pai, Sammie é levado pelos primos, os gêmeos Fumaça e Fuligem (ambos vividos por Michael B. Jordan), para se apresentar na abertura de um clube noturno regado a vinho, cerveja e whisky. Antes de partirem, Fumaça promete ao tio que irá devolver o primo “em um pedaço só”. Afinal, o que poderia dar errado?
Fumaça e Fuligem acabaram de retornar do norte americano, onde juntaram um bom dinheiro com atividade ilícitas. Com a quantia, compraram uma propriedade de um branco racista para transformar num clube, mas cientes de uma possível retaliação da Ku Klux Klan – os irmãos sabem se defender e são temidos na cidadezinha sulista.
“Pecadores” não tem pressa para assentar as bases da narrativa e estabelecer bem quem são os personagens. Assim, a ação que se desenrola mais tarde é muito mais significativa e impactante ao espectador. Por tempo considerável, os gêmeos revisitam relacionamentos do passado, sob o pretexto de contratar aqueles que irão ajudar na grande inauguração.
Uma destas relações é a ex-companheira de Fumaça. Interpretada pela monumental Wunmi Mosaku, Annie é uma curandeira que ainda pratica as crenças religiosas transmitidas pela avó africana. Em contraposição, Fumaça é cético. Ele diz que a única forma de garantir a sua segurança é por meio do dinheiro – ela discorda, é claro.
Há uma tensão constante entre fé e materialismo, mito e realidade, negros e brancos, bem e mal. A arte se torna, portanto, um refúgio inestimável – um momento raro em que todas as barreiras desaparecem. Em “Pecadores”, a música tem o poder de nos conectar ao ancestral e ao póstero. É uma linguagem compreensível por todos os povos, em qualquer era.
Partindo daí, Coogler dá uma nova dimensão, muito mais interessante do que a de um burocrata, ao vampiro tradicional. Como Remmick, o ator Jack O’Connell encarna um vampiro vindo da Irlanda que, entre uma refeição e outra, é seduzido por uma música poderosa, capaz de conjurar os espíritos do além – o blues de Sammie.
Nesta versão, os vampiros são seres que foram assimilados a um grupo homogêneo, que pensa e age de maneira uniforme, como um bando de zumbis atraídos por carne fresca. O vampiro é um colonizado que foi incorporado pelo colonizador – um monstro que se apropria da cultura alheia na tentativa de saciar um vazio que nunca será preenchido. Uma alma perdida.
Na história da música, a apropriação da cultura negra não é nada incomum. Elvis Presley, o chamado “rei do rock”, absorveu os sons de artistas negros e transformou a música deles em algo mais palatável para uma multidão de adolescentes brancas (foi entre elas, inclusive, que conheceu a futura esposa, quando Priscilla tinha só 14 anos).
O componente racial de “Pecadores” é ainda mais evidente considerando a filmografia de Coogler, que também dirigiu “Creed” e “Fruitvale Station”. Em confronto com Sammie, no entanto, o parasita Remmick faz uma proposta: “Eu quero as suas histórias. Eu quero as suas músicas. Você pode ficar com as minhas.” Lembra alguma coisa?
Em Hollywood, Coogler fez um trato inédito – sem vender a alma ao diabo, muito pelo contrário. Junto ao estúdio, assegurou o corte final de “Pecadores”, algo que poucos conquistaram; a participação imediata nos ganhos da bilheteria, sem ter de aguardar que a produtora recupere o investimento primeiro; e que, após 25 anos, os direitos da obra retornam para ele.
O último requisito vem aterrorizando os executivos, que já expuseram os seus comentários despeitosos na imprensa especializada. Quando um estúdio detém os direitos autorais de determinada obra, pode continuar explorando a marca como bem entende, para todo o sempre – sugando cada gota da criatividade alheia, como um vampiro maldito.
A Warner, por exemplo, decidiu anos atrás que precisava de um novo “Matrix”, e que o faria com ou sem a participação das irmãs Wachowski. O resultado foi um grande dedo do meio ao conglomerado, com o metalinguístico “Matrix Resurrections”. Afinal, por que uma analogia trans deve pertencer a quem contribui com a perseguição destas mesmas pessoas?
Com um capitalismo desembestado, em que empresários descartam produções completas para abatimento de impostos, e uma insistência imbecil na adoção da inteligência artificial, os direitos autorais vivem sob o ataque invejoso dos bilionários sem imaginação ou sensibilidade para a arte – os Faustos que nunca sequer tiveram almas para ofertar ao Cão.
Graças a “Pecadores”, Coogler toma a posse mais do que cabida, diante e atrás das câmeras, de todos os seus bens mais preciosos – a sua arte, a sua cultura, a sua história. Aturdido pelo ataque vampiresco, Sammie não consegue soltar o braço da guitarra, porque sabe que há criaturas sedentas para arrancá-la de sua mão.