Cinemas: O Dublê

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Ryan Gosling encanta em comédia de ação que presta homenagem aos que fazem a magia do cinema acontecer.

Com o sucesso de “Top Gun: Maverick”, dúzias de críticos elegeram Tom Cruise como “a última estrela de Hollywood” – já que, de alguns anos para cá, as pessoas vão ao cinema ver o Capitão América e não o Chris Evans. Nos tempos da Blockbuster, as vagas do estacionamento recebiam nomes como George Clooney e Julia Roberts, mas a era dos atores mais reconhecíveis acabou. Mesmo gostando muito deles, poucos sabem quem Anya Taylor-Joy e Bill Skarsgård são.

Neste ano, porém, temos alguns candidatos ao panteão (desde que não se importem com a poeira das colunas). Zendaya, que é produtora e protagonista de “Rivais”, convenceu o grande público a ver um filme original e, pasmem, sem classificação livre. Não é “o filme do Homem-Aranha” ou “o filme de Luca Guadagnino”, é “o filme da Zendaya”. Da mesma forma, há um novo “filme do Ryan Gosling” – e não é “o filme da “Barbie”.

Entre os cinéfilos, Gosling já era conhecido por produções mais independentes como “Drive”, do cineasta dinamarquês Nicolas Winding Refn, ou o trágico “Namorados para Sempre”, com Michelle Williams. Já passou pela comédia antes, é claro, mas “O Dublê” lança Gosling como um carismático (e engraçado) herói de ação. Tudo o que Dwayne Johnson, vulgo The Rock, vem tentando ser há, pelo menos, uma década.

Dirigido por David Leitch, dos pavorosos “Trem-Bala” e “Deadpool 2”, “O Dublê” seria um filme muito diferente sem a persona de Gosling, que é praticamente um anti-Ryan Reynolds. Ex-dublê, Leitch vinha numa pegada muito mais niilista e irônica, como bem mostra a sua filmografia. “Trem-Bala”, em especial, é como se o ChatGPT escrevesse um roteiro com base nas obras de Quentin Tarantino e Guy Ritchie, só que muito pior.

Com a exceção gritante de uma única piada, que fez toda a plateia grunhir de desaprovação, “O Dublê” tem um humor leve e divertido. E grande parte do mérito é de Gosling, que apesar de interpretar um super-herói da vida real, isto é, um dublê extremamente hábil, nunca exala aquele cheirinho de arrogância tão comum aos homens de barriga tanquinho.

No filme, Emily Blunt interpreta Jody Moreno, diretora de um longa de ficção-científica que mais parece uma mistura de “Duna” e “Mad Max: Estrada da Fúria”. Aqui, a metalinguagem nunca é cínica. Em dado momento, uma roteirista sugere resolver o problema do terceiro ato com uma admissão de culpa (imagine, por exemplo, um Ryan Reynolds quebrando a quarta parede), o que a diretora logo descarta. Ainda bem.

Aposentado depois de sofrer um acidente grave, o dublê Colt Seavers (Gosling) é convocado ao set de filmagem pela produtora Gail Meyer (Hannah Waddingham) para fazer as cenas de ação e, ao mesmo tempo, descobrir o paradeiro do astro Tom Ryder (Aaron Taylor-Johnson) – piada óbvia com Tom Cruise, embora Cruise também exista neste universo. Só que Colt e Jody já se conhecem de outros carnavais…

“O Dublê” é uma declaração de amor aos profissionais que fazem a magia do cinema acontecer. Não só aqueles como Colt, que se arriscam em manobras mortais, mas toda a pirâmide humana composta por assistentes, operadores de câmera e técnicos em geral que elevam um ator ao status de herói. Neste caso, é fácil colocar Gosling no topo.

Dando continuidade à temática de “Barbie”, Gosling interpreta um homem que dá um perdido na personagem de Blunt por se sentir fragilizado após o acidente que sofreu – uma sensação completamente inédita para um homem tão intrépido. Para reavê-la, ele precisa articular os seus sentimentos de maneira pública, dando adeus ao orgulho da masculinidade tóxica. Afinal, he’s just Colt.

Em outra cena, ele chora copiosamente ao som de Taylor Swift e não há nem sinal daquele desdém típico dos personagens espertinhos de Reynolds. Sem piscadelas ou tiradinhas, Gosling se entrega de corpo e alma, nunca debochando das motivações de seu personagem, do próprio filme ou mesmo do espectador, como “Deadpool” adora fazer.

Resta saber se Leitch, com a sua inclinação mais rasteira, vai parar de investir no Ryan errado e aproveitar essa galinha de ovos de ouro que é o charme de Gosling. Chad Stahelski, diretor de “John Wick” e também ex-dublê, já deitou e rolou com o seu “muso” inspirador – um ator carismático e sem um pingo de soberba.