Crime ocorre, mulher se ferra. Cheeseburger.

Lançados nesta semana, “O Bom Bandido” e “The Mastermind” retratam homens de família que recorrem ao crime, mas com abordagens opostas.

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No ano passado, comentei sobre “A Primeira Profecia” e “Imaculada”, dois filmes de terror que tratam de noviças em conventos sinistros, ambos aludindo ao cerceamento dos direitos das mulheres. Neste ano, a coincidência cinematográfica da vez é “O Bom Bandido” e “The Mastermind” – lançamentos em que homens de família recorrem ao crime, mas com estilos quase que diametralmente antagônicos.

Sendo exibido somente nos bairros mais ricos de São Paulo, “The Mastermind” carrega a sofisticada etiqueta da Mubi e a marca inequívoca da diretora Kelly Reichardt, responsável por preciosidades como “First Cow” e “Esculturas da Vida”.

Reichardt é conhecida pelo seu minimalismo – “Wendy e Lucy”, por exemplo, tem Michelle Williams (sua musa habitual) como uma sem-teto à procura da cadela perdida. “Antiga Alegria” retrata as conversas de dois amigos durante um acampamento. Não há explosões, reviravoltas, correrias etc., o que só torna “The Mastermind” ainda mais intrigante.

Neste contexto, “mastermind” pode ser traduzido como “o cabeça de um grupo criminoso”, isto é, o gênio que arquiteta um plano brilhante e deixa a polícia perplexa, alguém como George Clooney em “Onze Homens e um Segredo”. A diretora, no entanto, não decidiu dar uma de Steven Soderbergh e brincar com o subgênero do roubo executado à perfeição.

Josh O’Connor (do fogoso “Rivais”) interpreta JB, um carpinteiro desempregado, mas sustentado pela família afluente de Massachussetts, na década de 1970. Ele é casado com Terri (Alana Haim, integrante da banda Haim, que já trabalhou com Paul Thomas Anderson em “Licorice Pizza” e “Uma Batalha Após a Outra”) e pai de dois meninos gêmeos já na pré-adolescência.

Enquanto Terri trabalha em um escritório e cuida dos afazeres domésticos (em dado momento, um dos meninos pergunta “alguém vai fazer janta?” e só ela se mexe), JB se reúne com comparsas no porão de sua casa suburbana. Ele quer roubar um museu local, mas antes tem de pedir outro empréstimo à própria mãe, vivida por Hope Davis.

Esteticamente, “The Mastermind” habita a mesma galáxia de Wes Anderson, mas não o mesmo planeta. Não há aquele rigor na composição dos enquadramentos que confere a característica mais artificialesca de filmes como “Asteroid City”, mas há outros elementos em comum.

No início, os tons terrosos (mais puxados para o ensolarado, diferente do visual estéril da tendência “clean girl”) parecem nos dar um abraço. Passeando entre os quadros, há uma garota de boina recitando, de maneira casual, um poema em francês. As crianças são todas precoces e visitam museus com regularidade – ainda que o propósito do pai ao levá-las não seja educativo.

Os gêmeos, aliás, são idênticos aos filhos de Ben Stiller em “Excêntricos Tenenbaums” – o próprio JB tem um caráter semelhante ao do patriarca vivido por Gene Hackman, ou seja, um safado manipulador. A execução do crime em si é também patética, como em “Pura Adrenalina”. Quando JB precisa lidar com as consequências da vida real, contudo, as cores já não são mais tão calorosas. Reichardt abandona o Wes Anderson e vai para o Edward Hopper.

Em fuga, JB escuta a conversa de um grupo em um bar. Um homem negro diz que se alistou (para lutar no Vietnã) porque queria descobrir “que tipo de homem ele era” – aos homens, parece que é essencial que se provem de alguma forma, com algum “ato de bravura” que, muito provavelmente, só provocará dor e arrependimento. Muitas vezes, às custas das mulheres.

Em várias cenas, há algum comentário no rádio ou algum telejornal abordando o conturbado contexto político da época (com claros paralelos aos tempos atuais) – conjuntura que JB tinha o privilégio de ignorar enquanto vivia as suas aspirações de criminoso genial, sempre colocando todo o resto, inclusive a própria família, em segundo plano.

Ao contrário das fantasias masculinistas, no entanto, os fatos dão um jeito de se impor até mesmo aos mais privilegiados – em “The Mastermind”, a realidade chega, tanto para o protagonista como para o espectador, como uma cacetada. Já “O Bom Bandido”, por sua vez, é a versão industrializada, entupida de aditivos e corantes (este, com um valor nutritivo menor, com sessões em salas mais “populares”).

Dirigido por Derek Cianfrance, o mesmo de “Namorados Para Sempre”, “O Bom Bandido” é baseado num caso real, ainda que pareça mais fantasioso do que “The Mastermind”. Channing Tatum interpreta Jeffrey Manchester, um veterano de guerra que comete uma série de roubos para, supostamente, prover pela família.

É sabido que, nos Estados Unidos, muitos veteranos retornam de áreas de conflito e não conseguem mais encontrar lugar na sociedade. “O Bom Bandido”, porém, não tem nada a dizer sobre isto. Jeffrey só rouba porque a filha mais velha queria uma bicicleta e não por um problema social muito mais complexo. Mas, veja só que inusitado, ele é bonzinho com os reféns!

Apesar da gentileza toda, depois que ele é preso e condenado a passar décadas(?) em regime fechado, sua família é aconselhada por um grupo de apoio a cortar relações com ele. É tudo muito triste para o protagonista, que sente saudades da filha (dos outros dois, nem tanto), mas o diretor não têm interesse em explorar esse pequenino detalhe que colocará toda a trama em movimento.

Sem visitas ou ligações, Jeffrey dá um jeito de fugir da prisão. Em uma cena breve, vê de longe a filha pedalando na rua de casa, mas sabe que não pode se aproximar ou será recapturado. Ele chora um pouquinho e é isso. Sua família nunca mais retorna. A ex-esposa, retratada como uma vilã nas pouquíssimas cenas em que aparece, que se vire sozinha com as três crianças.

Ainda foragido, ele entra no banheiro de uma grande loja de brinquedos, tira uma placa do teto e consegue se esconder. Depois, encontra um vão atrás de um stand de bicicletas e passa a viver lá, sumindo com um produto ou outro e vigiando os funcionários da loja como se fizessem parte de uma novela. Tudo em tom de sessão da tarde.

Ele assiste, por exemplo, quando a vendedora Leigh, vivida por Kirsten Dunst, pede ao gerente por uma doação de brinquedos para a igreja da qual faz parte. O chefe é malvado e nega, mas Jeffrey, sendo um “bom bandido”, pega uns brinquedos da loja, vai até a tal da igreja e acaba, sem querer querendo, se metendo na família de Leigh, recém-divorciada e mãe de duas meninas.

Tatum é carismático o suficiente para transformar um papel que, se pararmos para pensar por dois segundos, não tem nada de “bom”. Depois de arruinar uma família, ele se sente solitário e vai arruinar uma outra. Afinal, ele tem consciência de que, em algum momento, precisa sair do país, mas decide brincar de casinha até lá.

Por que se esforçar tanto para entrar na vida de Leigh – Dunst fazendo um trabalho muito melhor do que o filme merece – e conquistar o afeto de suas filhas? Para deixá-las mais magoadas ainda quando ele desaparecer? Para que elas revivam o trauma do divórcio? Jeffrey é mesmo altruísta ou só quer se sentir bem ao ser agradecido e retribuído? Enfim, homens.

Na ficção e na vida real, os homens podem viver grandes aventuras, abandonar as suas famílias, substituí-las por outras… Não importa, alguma mulher vai ficar com a bucha – seja esposa, namorada, mãe ou irmã. O importante é que eles se divirtam.

🩷💜💙