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Desvendando o fascismo no sigilo
Bobices de “clean girl”, “old money”, “quiet luxury” e “tradwife” têm a ver com a reeleição de Donald Trump e a oligarquia de bilionários liderada por Elon Musk.
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Na trilogia mais recente de “O Planeta dos Macacos”, o chimpanzé César demonstra como é difícil quebrar um conjunto de gravetos quando estão todos unidos – é assim que “macacos fortes juntos” se torna o mote de uma insurreição contra a tirania da humanidade.
Na Roma antiga, o “fasces lictoriae” era um feixe de varas amarradas (às vezes, em torno de um machado) para simbolizar soberania e união. Antes do século XX, era associado ao liberalismo de esquerda – Marianne, a personificação dos ideias de “liberdade, igualdade e fraternidade” da Revolução Francesa, por exemplo, carregava um “fasces”.
Em 1919, contudo, Benito Mussolini fundou o “Fasci Italiani di Combattimento” – que, dois anos mais tarde, se tornaria o “Partito Nazionale Fascista”. Se apropriando da iconografia clássica, os fascistas queriam restaurar e expandir o Império Romano para reafirmar a superioridade da Itália.
(Em “Planeta dos Macacos: O Reinado”, reboot lançado no ano passado, o lema revolucionário de César é também incorporado e distorcido pelo vilão Proximus, o Mussolini da franquia.)
Caracterizado pelo forte militarismo, o movimento ultranacionalista busca eliminar toda forma de dissidência em prol de um líder político com poderes absolutos, um ditador. No fascismo, a união faz a força – nem que tenha de ser à força.
Para Mussolini, o fascismo só aceita o indivíduo desde que os seus interessem coincidam com os do Estado. Na moda, por exemplo, os uniformes fúnebres dos camisas-negras tinham a função de suprimir a individualidade e impor um único ideal – aquele estipulado pelo Duce.
Com promessas de retorno a um passado de glórias, corrigindo as supostas injustiças sofridas pela nação, o fascismo também tira proveito da misoginia. Ao obrigarem que as mulheres se atenham aos seus papéis tradicionais, os homens tomam todas as posições de poder.
Quando um interlocutor não defende a ideologia com todas as letras, estas são as pistas do “fascismo no sigilo”: conformismo, uniformidade, retrocesso e chauvinismo. Os fascistas não estão mais relegados a um fórum obscuro da internet. Estão nas trends do TikTok.
Nos Estados Unidos, duas influencers entraram em uma batalha legal por direitos autorais. Laura Gifford ganha a vida promovendo produtos da Amazon aos seus seguidores do TikTok, mas percebeu que o perfil de Alyssa Sheil estava “copiando” a sua estética minimalista e monocromática.
É claro que Gifford não é a inventora da estética. A moda “clean girl” (ou “meninas minimalistas”) tem a ver com roupas e ambientes assépticos, de design simples e com poucos adornos, em tons de branco e bege – e está em todos os cantos.
A própria Amazon recomenda uma lista de produtos mais “básicos” para que as influencers divulguem pelas redes. Pela lógica, é mais fácil vender uma cortina branca sem graça, que não ofende o gosto de ninguém, do que uma roxa com bolinhas verdes.
Não é acaso, portanto, quando um produto começa a ser divulgado por vários canais ao mesmo tempo. A sensação de que “todo mundo” está indicando aquilo faz com que o usuário se sinta ainda mais compelido a comprar. Afinal, ele não pode ficar de fora.
A uniformidade favorece o consumo em massa; o consumo em massa promove o conformismo. Estamos diante da desvalorização de tudo que é artesanal, único ou diferente – como se tivessem inventado uma máquina que transforma toda expressão humana em um objeto amorfo e sem identidade (e inventaram mesmo).
No fascismo italiano, os uniformes pretos eram deliberados – a cor relacionada à morte era para amedrontar o inimigo. Agora, os tons de branco e bege das “clean girls” atraem multidões com um visual que aparenta ser inofensivo. É o lobo em pele de cordeiro, mas os cordeiros têm a pelagem em tons de areia, fendi e off-white.
Se a comparação parece exagerada, há tendências mais declaradamente nocivas. Adjacentes à “clean girl”, “old money” (“fortuna velha”) e “quiet luxury” (“luxo discreto”) pressupõem a existência de um “new money” (“fortuna nova”) e de um “loud luxury” (“luxo extravagante”).
“Old money” se refere a famílias tradicionalmente ricas, que não esbanjam riqueza, pois estão habituadas a ela. A ostentação é coisa dos novos-ricos, é cafona. Nada de joias chamativas, roupas com marcas muito evidentes ou carros em cores berrantes – isto é, o oposto de um videoclipe de rap da década de 1990.
Mulheres estão dissolvendo o preenchimento dos lábios e removendo os implantes dos quadris para um look mais recatado, mais sóbrio, mais branco. Kim Kardashian, que molda toda a sua vida conforme o zeitgeist, também percebeu a mudança dos ares. Se antes emulava traços negros, agora nunca esteve tão pálida.
O distanciamento da cultura negra – muito cobiçada pela indústria da moda até poucos anos atrás – coincide com o surgimento das “tradwives”, influencers que adotaram o estilo de vida em que a mulher abdica de suas ambições individualistas para se dedicar à família (e, anos depois, entrar em depressão quando os filhos abandonarem o ninho).
Manter as mulheres subjugadas e “domesticadas” é vantajoso aos fascistas. Nós costumamos ter mais empatia pelas minorias do que os homens. É por este motivo que foi tão difícil conquistarmos o direito ao voto. Um direito, aliás, que ainda vive sob ameaça.
Tudo isto (essas bobices de “clean girl”, “old money”, “quiet luxury” e “tradwife”) tem a ver, é claro, com a reeleição de Donald Trump e a sua oligarquia de bilionários “redpillados”, liderada pela anta do Elon Musk.
Como muitos sabem, “red pill” faz alusão à cena do filme “Matrix”, em que o personagem de Keanu Reeves opta por conhecer a realidade, em vez de continuar na simulação; mas neste contexto, tem a ver com a adesão ao extremismo, à direita que usa chapéu de papel alumínio.
“Matrix” é uma alegoria trans criada por mulheres trans, as irmãs Lilly e Lana Wachowski. A distorção da obra delas é proposital. Assim como a ridicularização de tudo que o diretor Hayao Miyazaki defende – isto é, seu ambientalismo e a concepção da arte como um triunfo da humanidade – com as imagens geradas por IA no “estilo do Studio Ghibli”.
Desde Mussolini, há mais de um século que os fascistas se apropriam de tudo que é precioso e significativo à esquerda. Roubam, emporcalham, devassam, achincalham e descartam as sobras à beira do reconhecimento. São incapazes de conceber um pensamento original e, por se ressentirem disto, não querem que mais ninguém o faça.
Tal qual o fascismo italiano, o slogan “torne os Estados Unidos grande de novo” oferece uma viagem a um passado idealizado. Um comercial de sabão em pó dos anos 1950, em que toda a diversidade – de pessoas, opiniões, escolhas, cores, traços, corpos e vidas – era inexistente. O ideal fascista não permite variações, só tons monocromáticos.