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A crise da empatia
Em filmes, séries e até videoclipes, estamos todos em guerra com nós mesmos, mas o inimigo é outro.
Se pararmos para considerar “O Macaco”, “Mickey 17”, “A Substância” e a grande série do momento, “Ruptura” ou “Severance”, estamos todos em guerra com nós mesmos, ou com versões de nós mesmos. O verdadeiro inimigo, no entanto, é sempre outro – um fenômeno social, um sistema econômico, algum conceito abstrato e difícil de derrotar.
Em “O Macaco”, a desconexão entre irmãos gêmeos, de personalidades diametralmente opostas, desencadeia uma série de mortes estrambólicas que só intensificam as diferenças entre os dois. Já em “Mickey 17”, Robert Pattinson interpreta dois clones (no caso, o número 17 e o número 18) que se digladiam porque, onde trabalham, só pode haver um deles.
Em “A Substância”, apesar dos avisos constantes de que elas são uma só, Elisabeth (a matriz) e Sue (um modelo mais novo e aperfeiçoado) levam a competitividade às últimas consequências. Na série “Ruptura”, em que uma empresa cria um microchip capaz de dividir a mente humana, as “versões profissionais” (os “innies”, que só trabalham) tentam tomar o controle de suas “versões pessoais” (os “outies”, que vivem de folga).
No universo da música, Lady Gaga também lançou dois videoclipes relacionados ao novo álbum, “Mayhem”. Neles, a cantora vive versões diferentes dela mesma, e sempre em conflito. Em “Disease”, ela é perpetrador e vítima, médico e paciente. Em “Abracadabra”, ela é tirana e rebelde, bruxa má e bruxa boa.
O verdadeiro inimigo de “O Macaco” não é o brinquedo que, misteriosamente, causa acidentes bizarros sempre que dão corda nele, mas uma masculinidade tóxica que mantém os homens emocionalmente isolados uns dos outros. Em “Mickey 17”, o problema é um capitalismo desenfreado que desumaniza pessoas pelo bem de um “progresso” que só parece piorar a vida da grande maioria.
O produtor Harvey, de “A Substância”, personifica um sistema misógino que força mulheres a passarem por todo tipo de procedimento estético porque a aparência física é a única moeda de troca que elas têm. Beleza e juventude significam poder. Velhice e feiúra significam ostracismo. E em “Ruptura”? Adivinhe, o capitalismo de novo.
(Quem é o verdadeiro adversário de Lady Gaga? Pressões do mercado, muito provavelmente.)
Em todos os casos, há uma deficiência de empatia – característica que Elon Musk considerou como “a maior fraqueza da civilização ocidental”. Um bilionário como ele, que poderia melhorar a vida de milhares de pessoas com um esforço mínimo, não pode mesmo acreditar em empatia. Muito menos um bilionário nazista.
Se não temos empatia nem com nós mesmos, ou com aqueles que mais nos lembram de nós mesmos, como poderíamos ter empatia com quem é totalmente diferente da gente? O drama “Nickel Boys”, indicado a duas categorias do Oscar, utiliza uma estratégia que, apesar de eficiente, comprova o triste estado em que chegamos.
Utilizando a câmera como o ponto de vista dos personagens, o diretor faz com que o espectador se sinta na pele dos meninos negros que protagonizam a trama. Porque filmá-los de maneira tradicional já não é mais suficiente, talvez. Para sentir a dor que os dois sentem, o diretor achou necessário nos colocar literalmente no lugar deles. Do contrário, não prestaríamos atenção.
Todos aqueles que cresceram sem uma sólida representatividade na mídia – isto é, mulheres, negros, asiáticos, LGBTQ+ etc. – passaram décadas exercitando a empatia. Na minha infância, eu tive de encontrar algo de mim em Bruce Willis, Harrison Ford e até Arnold Schwarzenegger. Homens brancos e héteros, como Elon Musk, nunca tiveram de fazer este esforço.
A empatia é um esforço imaginativo. Ninguém é verdadeiramente inteligente sem imaginação. Há aqueles que nascem sem esta capacidade de se conectar (tanto o Wi-Fi como o Bluetooth de Musk não funcionam). Também é possível, no entanto, exercitar a empatia, como se fosse um músculo. E a melhor forma de fazê-lo é pela arte.
Entende agora por que eles tanto odeiam a arte?