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Pelas criancinhas
Medidas ao redor do mundo tentam proteger as crianças dos perigos da internet, mas nem todas as propostas são bem intencionadas.
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Nunca se falou tanto da segurança das crianças.
No Brasil, em resposta à denúncia do influencer Felca, a Câmara aprovou um projeto de lei para combater a “adultização”. Nos Estados Unidos, as ações da Roblox despencaram depois que a empresa foi acusada de “permitir e perpetuar um ambiente online onde os predadores infantis prosperam.” E o Reino Unido implementou a verificação de idade obrigatória para o acesso de conteúdo adulto na internet.
À primeira vista, qualquer pessoa razoável apoiaria essas medidas pela defesa das crianças. Se não há uma moderação eficaz por parte das grandes plataformas, então o governo tem de fazer alguma coisa. Só que não é tão simples assim. Cada um dos exemplos citados têm as suas próprias nuances e envolvem interesses não tão benevolentes.
Houve uma tentativa fracassada de golpe de Estado em nosso país. As redes sociais permitiram a ampla difusão de fake news no período das eleições presidenciais. No quebra-quebra de Brasília, os próprios terroristas do 8 de janeiro transmitiram para toda a internet os vários crimes que estavam cometendo. As plataformas possibilitaram e encorajaram esta mobilização.
É evidente que as big techs têm de ser regulamentadas – não só pelas crianças.
Os bolsonaristas agora se dizem contra a “censura”. Para defensores do autoritarismo, por sinal, andam muito preocupados com “liberdade de expressão”, mas não há mistério aí. Meses atrás, o Google e a Meta fizeram oficinas de inteligência artificial para o partido de Bolsonaro. É do interesse destas empresas que a direita retorne ao poder – para que elas tenham a liberdade para manipular.
O caso da Roblox, então, é especialmente deplorável. A plataforma de games é voltada para um público majoritariamente infantil e, há anos, vem ignorando denúncias de pedofilia entre os usuários. Cansado de ver os perfis reportados ainda na ativa, o youtuber Schlep criou contas falsas para atrair os criminosos, reunir as provas e entregar tudo à polícia.
E o que a empresa fez em resposta aos vídeos das prisões foi de uma burrice ímpar – mandou um “cease and desist” e baniu o youtuber por “imitar menores de idade”. A Roblox não quer eliminar uma porção significativa de seus usuários porque o lucro é mais valioso do que manter uma plataforma infantil livre de predadores. Não há outra forma de entender a situação.
É cabível discutir que a captura de pedófilos não deveria ser um espetáculo. O programa americano “To Catch a Predator” foi cancelado depois que um dos acusados cometeu suicídio para não ser humilhado em rede nacional – e o linchamento televisivo não consta na legislação. Está claro, porém, que civis estão entrando em ação porque empresas como a Roblox não fazem nada.
As coisas começam a se complicar quando a esquerda flerta com pânicos morais e propostas reacionárias vindas de outros países, como a verificação de idade obrigatória. Ainda que o mundo esteja com os olhos vidrados na decadência alarmante dos Estados Unidos, o Reino Unido também vem deixando a sua extrema direita muito feliz.
A emissora estatal BBC censurou segmentos de artistas declarando apoio aos palestinos; manifestantes estão sendo presos não por tacarem pedras em vitrines, mas apenas por segurarem cartazes. J.K. Rowling, a fubanga que criou “Harry Potter”, comemorou depois que o governo determinou que mulheres trans não poderiam ser consideradas mulheres.
Não sei se é necessário explicar que tanto a defesa desvairada de Israel como a transfobia disfarçada de “feminismo” são causas defendidas pela extrema direita. Parece um contrassenso que tantos simpatizantes do nazismo estejam apoiando Israel e acusando os demais de antissemitismo, mas é o que está acontecendo. Novamente, por interesses financeiros e não tão ideológicos.
Já é sabido que manifestações “em defesa das mulheres” (isto é, contra pessoas trans) contam com a participação de neonazistas fazendo sieg heil. Porque todo o pânico relacionado a mulheres trans praticando esportes competitivos ou frequentando banheiros femininos tem a ver com o reforço dos papéis de gênero. Meninas e mulheres estão sendo atacadas por usarem os cabelos curtos ou trajes mais masculinos.
Nesse contexto de censura e repressão, a verificação de idade cai como uma luva, já que a extrema direita distorce questões aparentemente inocentes – quem é a favor dos ataques terroristas do Hamas? Quem é contra a defesa das mulheres? Quem não quer proteger as crianças? – em benefício próprio. Sempre.
Em peso, a mídia divulgou que os acessos ao PornHub diminuíram depois que os britânicos implementaram o sistema de reconhecimento, insinuando um grande sucesso. Impediram, afinal, que menores de idade pudessem consumir conteúdo adulto. Acontece que “adulto” e “pornográfico” são conceitos subjetivos, que mudam conforme a ideologia política.
O sistema também impediu, por exemplo, o acesso a páginas informativas sobre menstruação. Ainda que a maioria das meninas menstruem pela primeira vez entre os 9 e 16 anos, é um assunto adulto, certo? Há pouco, vimos também o banimento de jogos da Steam e da Itch.io só por apresentarem personagens LGBTQIAP+, sem qualquer cena de sexo explícito.
Isso tudo não está protegendo as criancinhas, ao contrário. A ignorância é perigosa. A educação sexual torna a criança capaz de identificar quando um abuso é cometido, ela ensina o que é consentimento. Eu sou bissexual e só fui conhecer a palavra “homofobia” na internet, quando tinha uns 13 ou 14 anos – porque ninguém estava discutindo isso ao meu redor no início dos anos 2000.
Ontem mesmo, o Bluesky teve de bloquear IPs do Mississippi porque o governo estadual de lá determinou a obrigatoriedade da verificação. O sistema é caro, só plataformas grandes dão conta de implementar – ou seja, estão nos jogando de novo para o colo das ricas big techs, onde pedófilos e nazistas seguem ativos, sem represálias.
Em suma, os objetivos da extrema direita são: defender as big techs, porque as empresas manipulam as eleições e, pelo serviço prestado, constroem datacenters sem restrições ambientais e não pagam impostos; impedir o acesso à informação, destruir o senso de realidade e o pensamento crítico, para que sigam recebendo votos mesmo quando os cidadãos são vigiados, reprimidos e violentados.
Para eles, as crianças são bucha de canhão. Às vezes, são também escudo.