Uma América atrás da outra

Com "Eddington" e "Uma Batalha Após a Outra", Ari Aster e Paul Thomas Anderson capturam a ascensão do fascismo, mas só um cede ao desespero.

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Sem nem umedecer a ponta do indicador para determinar a direção do vento, o artista sente o que está por vir. São raras as vezes, porém, em que o lançamento de um longo projeto coincide com o momento exato em que a visão é consumada – isto é, quando a vida e a arte até parecem sincronizadas, sem que uma imite à outra.

Em “Eddington”, Ari Aster trata de um passado não tão distante, quando a pandemia se transformou numa guerra cultural, para abordar temas que extrapolam o período e se comprovam mais do que pertinentes à atualidade. Pena que o filme tenha estreado meses antes dos jornais descobrirem a expressão “violência política”.

Paul Thomas Anderson, no entanto, deu sorte (“não é sorte, é trabalho,” diria Daniel Plainview em sua página do LinkedIn). Com “Uma Batalha Após a Outra”, em exibição nos cinemas com versões em IMAX e até 4DX, o diretor faz quase uma cobertura ao vivo do que está acontecendo agora, neste instante – e nos indica uma rota de fuga.

De fato, é alarmante que tanto Aster como Anderson, que nunca se dedicaram a esse tipo de assunto – os “ismos” que rodeiam o lixão humano que é Donald Trump como se fossem moscas varejeiras, ou seja, o fascismo e o racismo – tenham ambos lançado sátiras políticas em 2025.

Se lembrarmos, contudo, que “Midsommar” trata de uma protagonista aliciada por uma seita, o interesse de Aster pela política americana já não parece tão repentino ou absurdo. Quem mais surpreende é o diretor de títulos tão díspares quanto “Boogie Nights” e “Embriagado de Amor”.

Anderson já tinha adaptado a obra do escritor Thomas Pynchon em 2014, com “Vício Inerente” – e nunca entendi o apelo. Considero “Sangue Negro” como uma obra-prima, adoro “Trama Fantasma”, mas fiquei aborrecida quando soube que ele adaptaria mais um livro do autor. Depois de “Uma Batalha Após a Outra”, talvez eu tenha de reconsiderar.

É até difícil descrever a trama sem estragar a eletrizante cadeia de acontecimentos que, apesar dos seus elementos mais estrambólicos, mantém os pés firmes no chão. Acho que basta esta breve sinopse: membros de um grupo revolucionário precisam escapar de forças fascistas cujo comandante (muito bem interpretado por Sean Penn) tem uma motivação particular para persegui-los.

Para não contaminar a minha opinião, evitei ao máximo ler qualquer coisa antes de ir ao cinema. No Bluesky, porém, vi de relance duas pessoas comentando que gostariam de ler uma crítica de “Uma Batalha Após a Outra” assinada por uma mulher negra. Apesar de não preencher todos os requisitos, entendi do que estavam falando em questão de cinco ou dez minutos de sessão.

Há uma personagem chamada Perfidia, interpretada por Teyana Taylor (atriz fantástica, sobretudo no drama “Mil e Um”), uma mulher negra, retratada de maneira exageradamente sexualizada. Pela montagem, toda a sua personalidade gira em torno do sexo. Sua “pepeca” é o símbolo máximo de sua individualidade.

Em dado momento do filme, ela é vigiada por outrem. A câmera assume o ponto de vista do voyeur e dá um close na bunda dela – mais longo do que o necessário para nos transmitir a informação de que há um interesse carnal nesse olhar.

Sim, as aventuras sexuais da personagem colocam toda a trama em ação, mas há um histórico assustador de humilhação e desumanização por trás do fetiche com o corpo da mulher negra. Anderson é um homem branco casado com a divina Maya Rudolph, com quem tem quatro filhos – ele deveria ter alguma consciência dessa problemática.

Mas não é minha intenção “cancelar” o diretor. Menciono somente porque pensar não dói e devemos questionar também os nossos artistas favoritos. Será que uma diretora negra, ou mesmo um diretor negro, teria filmado estas mesmas cenas de um jeito diferente?

Depois de um salto temporal, o ex-revolucionário Bob (Leonardo DiCaprio, em roupagem “O Grande Lebowski”) vive agora numa cabana no meio do mato, abusando da bebida e das drogas, enquanto cria a filha adolescente, Willa. Afinal, a sua geração – a minha geração, os millennials – não conseguiu tornar o mundo um lugar melhor. Os fascistas estão no poder, a MTV morreu e a torrada com abacate está uma fortuna. Só nos resta afogar as mágoas.

Mesmo assim, é engraçado ver o pai perguntando à garota se um de seus colegas é trans, só para não usar os pronomes errados. É o nosso jeitinho, sabe?

Lá na virada do século, nos prometeram um futuro repleto de avanços sociais graças à democratização da informação e do conhecimento. Agora, que atingimos a meia idade soterrados de fake news e propagandas de bet, estamos todos deprimidos e/ou com burnout – mas ainda somos mais maleáveis do que certas gerações.

Sou três anos mais nova do que o personagem interpretado por DiCaprio (na vida real, ele tem 50 anos, não 42). Acho que é a primeira vez que vejo a minha geração retratada assim – velha, fracassada, de pijamas em sua casa, como no recadinho de João Dória –, mas ainda tentando fazer aquilo que parece moralmente correto. Achei um retrato justo.

Bob é um incompetente com boas intenções, é um pai que ama a filha a ponto de se emocionar ao ouvir de uma professora que a menina está indo bem na escola – apesar das suas falhas como pai e da amargura da derrota que sofreu em âmbito pessoal e político tantos anos atrás.

Quando as coisas se complicam, um pequeno exército de pessoas comuns se mobiliza para proteger a família. E este pequeno exército é composto, principalmente, por minorias. Sem o apoio de Deandra (Regina Hall) e de um professor de caratê conhecido apenas como “sensei” (Benicio del Toro), Bob não duraria nem quinze minutos de perseguição.

E mesmo com um ritmo frenético que remete aos irmãos Safdie, como é bonito ver a comunidade inteira, dos skatistas latinos às freiras que cultivam maconha, se organizando e se ajudando com os recursos que ela tem.

Como artistas, Aster e Anderson capturaram o zeitgeist, mas “Eddington” é um filme que deixa um gosto amargo – é natural, o diretor se destacou primeiro no gênero do terror. Já Anderson nos propõe que o título “uma batalha após a outra” não deve ser encarado como a maldição de Sísifo. Porque várias mãos diferentes empurram a pedra morro acima.

Se a nossa geração não conseguiu fazer a revolução, há a próxima. E depois a próxima. E depois a próxima…

🩷💜💙