O estranho conforto de The Pitt

De formato conhecido, série médica da Max investe no drama e inova com personagens mais complexos e realistas.

Minhas finanças estão na UTI, tens o que é preciso para apoiares o meu trabalho?

Em fevereiro de 2013, quando a Netflix lançou “House of Cards”, o streaming prometia revolucionar a televisão. Dez anos depois, os preços triplicaram, nossas séries favoritas foram canceladas e a qualidade das produções caiu – os salários dos CEOs, no entanto, só aumentam. Neste cenário desanimador, como “The Pitt” se destacou?

Encabeçada por Noah Wyle, a série médica da Max tem mais elementos familiares, além do ator de “Plantão Médico” – começando, é claro, pela ambientação. Com algumas exceções, os hospitais saíram de moda na chamada era de ouro da TV. Na verdade, o próprio formato episódico cedeu o seu espaço consagrado à narrativa geral.

Diferente de séries como “Sopranos” ou “Breaking Bad”, é possível assistir um episódio qualquer de “House”, por exemplo – já que cada um trata de um caso diferente. Mesmo que exista um histórico mais complexo entre os personagens principais, há um recomeço e um desfecho em todo capítulo.

Nos últimos anos, parte considerável do entretenimento se tornou uma tarefa (para entender algo da Marvel, é preciso ver 184 filmes e 93 séries). O formato episódico é, portanto, um alívio. Também já sabemos como funciona um drama hospitalar – os pacientes entram e saem, sem necessidade de analisarmos uma árvore genealógica repleta de incesto e dragões.

Com tanta familiaridade, assistir “The Pitt” pode parecer algo casual – mas se a série economiza em inovação, ela investe no drama. Tirando o jaleco do armário, Wyle interpreta o Dr. Robby, chefe do pronto-socorro conhecido como “o fosso”. Ainda traumatizado pela pandemia, ele tem de manter as emoções sob controle para guiar seus residentes pelas emergências mais variadas.

Cada episódio representa uma hora de um turno exaustivo. Assim, a primeira temporada de “The Pitt” tem 15 capítulos – mais um aceno à televisão de outrora. Afinal, tudo o que as plataformas de streaming não cancelaram, elas trataram de encolher. Se a primeira temporada de “House” tinha 22 episódios, a primeira de “Stranger Things” teve só 8.

Ao contrário da Netflix, a Max também não libera a temporada inteira de uma vez. Há quem prefira assistir tudo numa noite só. Com episódios semanais, contudo, há tempo para digerir cada acontecimento. Nossas emoções evoluem no ritmo em que os personagens estabelecem os seus relacionamentos mais significativos – aos pouquinhos.

Há, é claro, episódios pesados, que envolvem óbitos e tragédias. Não seria aconselhável ver sem desopilar entre uma tristeza e outra. E apesar disto, de todo o estresse que os médicos têm de suportar, “The Pitt” é uma série que reconforta. É bom vê-los retratados como seres humanos, ainda que o CFM faça de tudo para piorar a impressão que temos dos doutores.

Em geral, a medicina é um curso que atrai muitos jovens ambiciosos e de famílias ricas – ou seja, nada interessados pelos pacientes como pessoas, mas como oportunidades profissionais. O médico tem de se distanciar emocionalmente para que não caia em lágrimas a cada perda, mas muitas vezes, o que encontramos não é resguardo. É indiferença.

A jovem Dra. Santos, vivida por Isa Briones, representa esse aspecto menos humanizado no tratamento dos pacientes (embora ela tenha uma importante curva de aprendizado ao longo da temporada). Em contrapartida, há a maravilhosa Dra. King, papel de Taylor Dearden, filha do ator Bryan Cranston.

A Dra. King não é só um prazer de acompanhar – eu entregaria toda a minha vida em suas mãos –, ela é também um passo significativo para uma representação menos estereotipada dos neurodivergentes. Mesmo sem nunca se declarar como tal, a doutora conta que tem uma irmã autista e também apresenta características típicas (na vida real, a atriz tem TDAH).

O arquétipo do “savant” é bastante conhecido pelo público – um homem que é brilhante no que faz, mas que não sabe lidar com pessoas, é considerado grosseiro e esquisito. Sherlock Holmes, inspiração da série “House”, é o exemplo mais óbvio de um “savant”. No imaginário popular, o autista é muito associado às altas habilidades e à intratabilidade (mesmo que nem todos sejam assim).

Já vimos “Rain Man”, “House”, “Sherlock”, “Big Bang Theory” e o pavoroso “The Good Doctor” – mas como uma mulher autista se comporta? Por razões biológicas e culturais, mulheres neurodivergentes apresentam traços que diferem do padrão masculino. Muitas, inclusive, só são diagnosticadas na vida adulta, já que os meninos foram mais estudados.

Na história da medicina, vários profissionais propagaram mitos perigosos com relação ao autismo. A ideia persistente de que as vacinas causam o transtorno é só a ponta do iceberg. Também culparam uma suposta frieza da mãe (é sempre a mulher) na criação de uma criança que, para os médicos de então, seria incapaz de sentir empatia ou de viver em sociedade.

Em “The Pitt”, a Dra. King é inteligente e muito atenta aos detalhes, mas longe de exibir a perspicácia sobrenatural do personagem criado por Arthur Conan Doyle. Ela nem sempre percebe quando alguém faz uma piada, mas não é retratada como uma boba ou como uma desastrada que, para alívio cômico, vive tropeçando, como a Netflix fez com “Geek Girl”.

Ela é extremamente sensível às necessidades dos outros, mas não utiliza o seu conhecimento para impressionar. A medicina não tem a ver com “superar seus oponentes”. Quando dá sinais de esgotamento, ela tem táticas para lidar com o estresse por conta própria, sem explodir – e mesmo exaurida, tanto física como emocionalmente, ela é gentil e atenciosa.

À primeira vista, “The Pitt” pode parecer uma série médica como qualquer outra, mas são personagens complexos e realistas como a Dra. King que tornam o drama em algo especial e revigorante.

🩷💜💙