Sim, somos humanos

A frustração do jogo "No, I'm not a Human" e o ataque coordenado à humanidade.

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“No, I’m not a Human” é um jogo independente que caiu nas graças dos youtubers já na publicação da versão demo em junho deste ano. Lançado oficialmente no meio de setembro, consegui assistir algumas horas de gameplay e conferi os dez finais possíveis. Achei a premissa e a direção de arte estranhamente fascinantes.

No jogo, o sol se tornou tão quente que as pessoas não saem mais de dia. Durante a noite, estranhos batem à porta, buscando por abrigo. Deixá-los na rua é sentenciá-los à morte, pois nada sobrevive ao calor. Entre os desconhecidos, porém, há também impostores – criaturas perigosas que emergiram de suas tocas subterrâneas para matar os humanos.

O jogador precisa, então, decidir quem entra ou não em sua casa. Se entrarem, eles também podem ser testados, conforme as informações que você recebe pela televisão ou pelo rádio. Por exemplo, nos primeiros dias, é divulgado que essas criaturas, chamadas de “visitantes”, têm a dentição perfeitamente branca. Você pode pedir para checar os dentes dos seus hóspedes e determinar se são ou não humanos.

“Mas e se for um ex-BBB que fez parceria com um dentista vagabundo e destruiu o próprio sorriso colocando lentes de contato?” Pois é, esse é o desafio. Todos os “sinais” que, supostamente, identificariam os monstros (dentes brancos, unhas sujas de terra e olhos avermelhados) são dúbios. Um jardineiro pode ter as mãos sujas de terra. Alguém que não dormiu bem pode ter os olhos avermelhados.

Trata-se, portanto, de um videogame em que o jogador é forçado a questionar o tutorial, isto é, questionar as informações que ele recebe da imprensa ou até mesmo de autoridades governamentais. Aliás, há um grupo de agentes federais que tentam conter a crise levando hóspedes aleatórios para serem “testados”. Essas pessoas nunca mais são vistas.

Até youtubers experientes, como John Wolfe, “bugaram” com a proposta de “No, I’m not a Human”. Em suas primeiras tentativas, ele preenchia uma planilha com quais personagens eram humanos – mas alguns podem ser humanos numa rodada e “visitantes” em outra, independentemente dos “sinais” que apresentem. Então, os sinais não importam?

Há jogos em que a frustração é o propósito. Passamos por uma pandemia em que as informações nem sempre eram precisas (lembra da fase de lavar as embalagens das compras do mercado?). O presidente mesmo tentou empurrar uma cura milagrosa que, com a conivência do Conselho Federal de Medicina, só levou mais pessoas aos hospitais. O apocalipse é mesmo frustrante. Há paranoia e oportunismo.

Quando tratamos de negar a humanidade de alguém, e com base na aparência, a situação é ainda mais crítica. Wolfe foi inteligente (é por isto que o acompanho há anos) e, em vez de desistir do jogo por completo, tentou encará-lo de outra maneira – se concentrando mais no que os personagens tinham a dizer do que só nas características físicas informadas pela tevê ou pelo rádio. E foi assim que “No, I’m not a Human” fez sentido.

É importante frisar que, quando falo em prestar atenção aos diálogos, não quero dizer que apenas os mais simpáticos ou aqueles de comportamento mais “normal” são os verdadeiros humanos. Como na vida real, tem gente de todo tipo. O jogador é forçado, portanto, a encarar esses personagens de forma menos superficial, ou não tão superficial quanto o próprio tutorial sugere – o que, para o universo gamer, já é um serviço público.

Afinal, enquanto membros mascarados do ICE sequestram os chamados “aliens” (não importa se nasceram nos Estados Unidos ou se foram para lá legalmente, mas qual é o tom da pele, a cor dos cabelos e dos olhos), a humanidade é também vilipendiada pela indústria da tecnologia – dos jovens nerds aos CEOs de redes sociais.

🩷💜💙