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A linha invisível
No terceiro mistério de Benoit Blanc, detetive interpretado por Daniel Craig, o diretor Rian Johnson não quer pregar aos convertidos.
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“‘Sim,’ ele disse, ‘Eu o peguei, com um anzol oculto e uma linha invisível que é longa o suficiente para deixá-lo perambular pelos confins do mundo, e ainda trazê-lo de volta com uma puxada na linha.’”
A Inocência do Padre Brown, G.K. Chesterton
Nos mistérios do Padre Brown, um detetive do mesmo calibre que Hercule Poirot ou Jules Maigret, a “linha invisível” se refere à liberdade que Deus nos dá para nos desviarmos de Seu caminho. A “puxada na linha” ocorre quando, de alguma forma, somos compelidos a retornar – como a ovelha desgarrada devolvida ao rebanho.
No contexto da trama policial, um criminoso até pode ludibriar as autoridades, mas não conseguirá escapar de Deus. Neste caso, “Deus” não deve ser compreendido como um mero agente do karma, isto é, como a entidade sobrenatural que pune aqueles que não conseguimos punir nós mesmos.
É mais no sentido da “força metafísica”, digamos assim, que nos ajuda a enxergar as nossas falhas e a corrigir as nossas rotas – não por uma imposição externa, mas por um ímpeto nascido no âmago, somente encorajado pela puxada na tal linha invisível.
(O que faz o protagonista de “Crime e Castigo” se arrepender? É a intervenção de Deus? É uma consequência social da culpa cristã? Pertence mesmo ao reino religioso ou apenas filosófico/cultural? Não sabemos. Portanto, chamo aqui de “força metafísica”, por tratar do suprassensível.)
De acordo com a teologia cristã, a “graça de Deus” oferece perdão e salvação àqueles que, por justiça, seriam condenados. É um presente divino que nos é ofertado não por merecimento, mas pela generosidade de Deus – qualidade esta que, por princípio, contraria as próprias bases do capitalismo.
No Novo Testamento, “graça” vem da palavra grega “charis” (χάρις), que não se limita ao conceito de favor, bênção ou bondade, mas abrange também ideias de beleza, alegria e gratidão. Na Grécia Antiga, a “graça” não era vista apenas como um presente, mas como um conceito moral, que eleva o caráter e promove uma sociedade justa.
Justiça social. Graça divina. Força metafísica. É de se estranhar que tudo isto esteja relacionado a um filme escrito e dirigido por Rian Johnson?
Em sua terceira aventura, o detetive Benoit Blanc tem de ignorar o desprezo pela religião organizada e auxiliar um padre acusado de assassinato na busca pela absolvição.
Interpretado por Daniel Craig, Blanc é um homem gay (em “Glass Onion”, Hugh Grant faz uma ponta como o seu marido); filho de um policial (fato revelado num diálogo de “Entre Facas e Segredos”); e criado no sul dos Estados Unidos – no novo “Vivo ou Morto: Um Mistério Knives Out”, descobrimos também que ele é fã de musicais. É claro que ele odiaria a Igreja.
Há religiosos que acreditam que é impossível agir de maneira ética sem a ameaça constante do fogo dos infernos. O detetive sulista, porém, é um fiel adepto da gentileza. No primeiro filme, enquanto familiares se estapeiam pela herança, Blanc é o único a reconfortar a mãe da vítima, quase sempre largada num canto.
Na sequência, mesmo quando o caso escapa da sua jurisdição, ele ainda encontra uma forma de ajudar a cliente a executar um ato final de justiça poética. Blanc é um homem tão generoso que nem faz questão de ser o ponto focal de “Vivo ou Morto” – só aparece mesmo depois de uns quarenta minutos, nos quais o jovem padre explica a sua situação.
Vivido por Josh O’Connor, um dos queridinhos da nova geração de atores, o padre Jud tem suas complexidades. Foi um pugilista profissional que, após um acidente infeliz, acabou adotando a batina. No pescoço, tem uma tatuagem parcialmente escondida pelo colarinho, algo incomum em homens da fé.
De cara, Jud é retratado como alguém que pode reagir de maneira violenta, ainda que enxergue a Igreja como uma instituição que deveria acolher as pessoas, em vez de afugentá-las. Para o seu azar, ele é enviado à paróquia do monsenhor Wicks (Josh Brolin), cuja vocação é achincalhar possíveis fiéis – e, assim, radicalizar os poucos que restarem.
Como nos filmes anteriores, há o comentário político que debocha de figuras da extrema direita, com o mesmo conhecimento de causa de quem vive cronicamente online. Por exemplo, um escritor interpretado por Andrew Scott (o “padre gato” da série “Fleabag”) menciona que precisa “sair do inferno do Substack”, algo que os mais afortunados nem vão saber do que se trata.
(Após inúmeras demissões em redações de jornal, portais etc., muitos escritores, críticos e jornalistas acabam recorrendo ao serviço de assinaturas do Substack, uma alternativa precária quando comparada à segurança de um emprego fixo – e logo numa plataforma que permite conteúdo nazista.)
Partindo daí, seria muito fácil cair na armadilha da justaposição rasa entre ciência e fé, fato e mentira, luz e trevas, esquerda e direita – além de passar o filme todo fazendo referências que só quem tem conta no Bluesky iria pescar. Em “Vivo ou Morto”, no entanto, Johnson não quer pregar aos convertidos.
Ao espectador religioso, o diretor pede que considere a possibilidade da virtude independente da fé. Não é preciso aderir às normas estabelecidas por determinado grupo para fazer o bem. Muitas vezes, é necessário justamente o oposto – ter a coragem para desobedecê-las, mesmo arriscando o julgamento e o ostracismo.
Ao espectador cético, ele propõe uma defesa inspirada do que há de mais bonito no pensamento religioso.
Em dado momento, Blanc associa a crença em Deus à falsidade dos contos de fadas, comentário que Jud não recrimina. Com um sorriso no rosto, o padre opta por exaltar a capacidade humana de organizar o mundo em narrativas que façam sentido – o que se aplica à religião, mas também à arte, à política e tudo mais que nos move.
Nós somos os autores do sentido de nossas vidas. Como padre, o sentido da vida de Jud é oferecer um refúgio incondicional, até mesmo àqueles que não o merecem – pela graça de Deus.
Mesmo longe de se converter, Blanc compreende a necessidade de uma narrativa que ofereça algum conforto diante da morte, não para evitarmos um inferno hipotético no pós-vida, mas para morrermos em paz com nós mesmos.
Gentil como sempre, o detetive abre mão de sua revelação apoteótica (algo que Sherlock Holmes jamais faria) para permitir que o culpado confesse o seu crime por conta própria.
Blanc pode não acreditar em Deus, mas tem fé na linha invisível.