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Foi Apenas Um Acidente do Agente Secreto
O maior rival de “O Agente Secreto” na disputa pelo Oscar, “Foi Apenas Um Acidente” possui semelhanças com o filme de Kleber Mendonça Filho.
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“Sei que meus filmes não agradam o governo. Mas isto não é razão para eu não voltar ao meu país. Eu vou voltar,” disse o iraniano Jafar Panahi. Em campanha pelo Oscar de melhor filme internacional, o diretor de “Foi Apenas Um Acidente” – já nos cinemas brasileiros – acaba de ser sentenciado a um ano de prisão pela República Islâmica do Irã.
Panahi já havia sido condenado em 2010. Na época, foi proibido de sair do país (com raras exceções), de dar entrevistas aos jornalistas e até mesmo de fazer filmes – o cineasta, contudo, continuou filmando em segredo. E deu um jeito de fazer a sua obra atravessar a fronteira, livre da censura do regime.
Em 2022, foi preso outra vez. Após iniciar uma greve de fome, acabou sendo liberado. Mesmo assim, quando a temporada de premiações terminar, ele planeja retornar ao país de origem – muito provavelmente, com uma estatueta dourada em mãos. Em Cannes, afinal, “O Agente Secreto” levou os prêmios de melhor ator e diretor, mas o ganhador da Palma de Ouro foi “Foi Apenas Um Acidente”.
Na primeira vez em que foi preso pelo regime iraniano, Panahi passou a maior parte do tempo numa solitária. Quando era levado ao interrogatório, seus olhos eram sempre vendados. Assim, ele só tinha os sons que os seus torturadores emitiam para se situar. “Foi Apenas Um Acidente” é também um filme guiado pelos sons.
À noite, numa estrada escura, um homem dirige um carro, acompanhado da esposa e da filha pequena. De repente, um solavanco e um ganido de cachorro. Ao sair do carro para averiguar o estado do bicho, o andar do motorista produz um barulho estranho – barulho este que, momentos depois, faz com que Vahid (interpretado por Vahid Mobasseri) reconheça o seu próprio torturador.
Enfurecido, Vahid segue o homem e o sequestra. De fato, ele têm uma prótese de borracha no lugar da perna direita, assim como o monstro que lhe aterrorizou na prisão, mas o homem diz que é tudo um engano e que não faz ideia do que está acontecendo. Em dúvida, Vahid entra em contato com outras vítimas da repressão para, enfim, confirmar a identidade do sequestrado e matá-lo.
Não há flashbacks em “Foi Apenas Um Acidente” – nem mesmo o cachorro atropelado é mostrado. Sabemos o que aconteceu com cada personagem porque eles nos contam. Cabe a nós, espectadores, o esforço imaginativo de visualizar e compreender a gravidade do que foi cometido contra eles. Estamos, assim como Panahi, nos situando pelos sons.
Cada vítima tenta reconhecer o torturador por meio de algum sentido – o som da prótese, o cheiro do suor, a textura de suas cicatrizes… Mas ninguém tem certeza absoluta. São pessoas boas, não querem matar por matar. E são pessoas tão boas que passam o filme gastando o próprio dinheiro por causa do sequestrado.
No elenco, o único ator profissional é o homem da prótese, Ebrahim Azizi. Todos os outros possuem pouca ou nenhuma experiência com atuação. É evidente que o diretor quis que os espectadores vissem pessoas comuns na tela, que se reconhecessem nelas ou que se colocassem em seus lugares.
Ainda que seja o maior rival de “O Agente Secreto” no Oscar, “Foi Apenas Um Acidente” possui semelhanças quase espirituais com o filme de Kleber Mendonça Filho – ambos começam em estradas solitárias, retratam vítimas de ditaduras, tentativas de resistência, paranoia, nomes trocados etc. Têm em comum, inclusive, o close em corpos deformados pela guerra, que um personagem ou outro vê como fonte de orgulho, não de sofrimento.
Mesmo geograficamente distantes, Panahi e Mendonça Filho estão falando das mesmas coisas – da importância do relato falado, da vivência de cada pessoa, da empatia que tanto nos diferencia deles. Uma vitória para Panahi é também uma vitória nossa.