A Garota da Vez e o pacto da masculinidade

Baseada em fatos reais, estreia de Anna Kendrick como diretora aborda o pacto da masculinidade.

đŸ©·đŸ’œđŸ’™ Apoie o meu trabalho! apoia.se/iedamarcondes

Em 1978, um serial killer participou de um programa de namoro na tevĂȘ. Sem um pingo de apreensĂŁo, fez comentĂĄrios sugestivos e acabou escolhido pela mocinha. Este fato real Ă© o ponto de partida de “A Garota da Vez”, estreia de Anna Kendrick na direção – que tambĂ©m interpreta Cheryl, a participante em perigo.

Na vida real, Rodney Alcala foi condenado por sete assassinatos, mas hå suspeitas de que ele tenha matado mais de cem (com predileção, é claro, por jovens mulheres). Kendrick, no entanto, não se interessa pelo sensacionalismo do true crime, mas no sistema que possibilitou com que o psicopata se sentisse à vontade para mostrar o rosto em rede nacional.

Sob uma perspectiva feminina, o filme parece todo guiado por uma famosa citação da autora Margaret Atwood: “Homens tĂȘm medo que as mulheres riam deles. Mulheres tĂȘm medo que os homens as matem.” E, assim, as personagens caminham numa infinita corda bamba – qualquer movimento em falso, uma palavra ou um gesto desagradĂĄvel, pode resultar em morte.

Em “A Garota da Vez”, contudo, o assassino nĂŁo Ă© o Ășnico vilĂŁo. HĂĄ produtores que objetificam atrizes e atĂ© policiais que menosprezam denĂșncias importantes. Na verdade, todas as mulheres que Rodney conhece jĂĄ haviam sido vitimizadas por algum homem (por um cara que desapareceu assim que a namorada ficou grĂĄvida, ou por um pai ausente).

Em mundo dominado pelos homens, e com a ameaça constante de violĂȘncia fĂ­sica, ser mulher Ă© um inferno. Enquanto eles circulam por aĂ­ despreocupados, falando tudo o que dĂĄ na telha sem qualquer tipo de filtro ou represĂĄlia, nĂłs vivemos em estado de hipervigilĂąncia, medindo as prĂłprias palavras para prevenir ou remediar qualquer tipo de insatisfação.

Por uma questĂŁo de sobrevivĂȘncia, fazemos dĂșzias de pequenas concessĂ”es todos os dias, nos tornamos menores e mais silenciosas. E mesmo com todo esse esforço, atĂ© os homens em que mais confiamos podem optar por defender um desconhecido, em vez de acreditar no que temos a dizer. Pois este Ă© o pacto da masculinidade, “bros before hoes”.

É por isto que, apesar da edição confusa, que vai e volta no tempo para retratar algumas das vítimas de Alcala, que considero “A Garota da Vez” uma boa estreia. Ainda que apareçam brevemente, as personagens parecem ter vida interior e a direção nem sempre opta pelo caminho mais convencional. Não parece uma produção feita para o streaming.

Num gĂȘnero em que a mulher nem sempre tem voz, Kendrick oferece um ponto de vista importante. No true crime, Ă© comum nos lembrarmos dos serial killers, de Jack Estripador, ZodĂ­aco e Ted Bundy, mas Ă© raro retratarmos as mulheres como algo alĂ©m de um corpo sem vida, sĂł mais um quebra-cabeças para os detetives profissionais e amadores.

É sabido que as mulheres sĂŁo as que mais consumem true crime – numa tentativa de lidar com os prĂłprios traumas ou como um mecanismo de enfrentamento, uma forma de lidar com a violĂȘncia de gĂȘnero em plena segurança. E precisamos de mais filmes e sĂ©ries feitos por mulheres, para mulheres, sobre mulheres.